A Obra |
Hoje tirei o dia para fazer
faxina, na casa só eu, a mãe, Cora que ainda está na barriga e Florbela estão de
férias, na minha espera enquanto ainda não me livro do trabalho. O pai em casa
sozinho, caçando tarefas, exercícios de uma personalidade que se organiza na
bagunça pessoal. Metódico doméstico, a ordem do dia é varrer, aspirar, arrastar
móveis, aproveitar a rara disposição e o fato da grávida não está no recinto e
pintar o quarto do bebê que virá em abril e a provisória única pequena
exploradora e inquieta da casa não está para atrapalhar.
Eis que no meio da
estafante tarefa de pintar as paredes cheias de riscos, rabiscos, formas
estranhas e coloridas, ao terminar o quarto da Cora que ainda não nasceu, me
deparo com outro desenho, desta vez na sala de jantar. Um Florbelaaaaaa bem
alto soa na minha mente carrancuda e ignorante do mundo das crianças que um dia
já foi meu e de todos adultos.
Provavelmente, se ela
estivesse em casa, reclamaria, seria grosso, mostraria a coisa errada e feia
que ela fez com ar educativo e realista de quem sabe o que é certo e errado.
Mas a solidão da casa deixa brechas para reflexões, tornando-me um filosofo de fim
de semana, me permiti olhar melhor o desenho e iniciei minha aula, com a
professora Florbela ausente.
Uma verdadeira obra de
arte, a qual não apagarei, servirá para mais aulas, revisões, e quem sabe um
dia, para ela mesma lembrar-se de sua alma livre de criança, é também um
manifesto reflexivo sobre quantos pais e filhos não podem ter a ampla liberdade
do amor, fazer da casa um ateliê do mundo melhor, possível ao menos na sala de
jantar.
O Código Florbela me
levou a verdade da não verdade, de que tudo é tudo e nada ao mesmo tempo, de
que estamos sempre sendo, nem fomos, nem seremos, sempre estamos sendo, podemos
ser crianças, adultos e velhos ao mesmo tempo, o que importa é viver o que se
é, do jeito que é, mas sendo e deixando ser, nós e os outros. Um desenho da
vontade de potencia, de uma menina que um dia será uma mulher e eu, um velho
avô que tentará em meio a erros e acertos, lembrar desses dias de arte
ativamente, sem ressentimentos travadores da boa limpeza da memória que precisa
nos deixar ser o que somos no presente atual e em todos ainda pela frente, os
que alguns chamam de futuro.
A pequena nietzschiana
sem saber me deu uma aula de filosofia prática, sobre o belo que é tudo aquilo
que é feito pelo ser em sua essência, sem pretensões, sem idealismos, sem
niilismos, apenas a vontade, um lápis, a parede a sua frente, o ato humano cru
e fiel a vontade de realidade.
Na volta das férias
vamos conversar e filosofar mais sobre sua arte e este texto gravado na nuvem
da internet servirá de lousa para quem sabe, o aperfeiçoamento da pequena
artista mais tarde, de quanto ela foi responsável pela melhora do pai, doente
na falta de mais “amor fati”, preso a casa ideal no mundo platônico e por
tabela, uma base para irmã mais nova que ainda está presa no amor amniótico e
umbilical da mãe, mas ganhará em meses a oportunidade de se aventurar na
imensidão dessa jornada do real, sendo tudo e nada a cada momento. Foi preciso ficar sem elas em casa para aprender tudo isso, resumir que sem suas "danadisses" do jardim feminino, eu nem teria chão e nem teto, nada para chamar de lar. Obrigado a
pequena estrela bailarina que diante de um aparente caos de manchas e rabiscos
na parede, pode dançar livre, leve e solta pela casa e pelo mundo. (Paráfrase
de Nietzsche)